«Relva Verde Para Cláudio»,
de Maria Eugénia Cunhal

A arte de agarrar a vida <br>no momento exacto

Domingos Lobo
A arte narrativa de Maria Eugénia Cunhal, como de resto a sua poesia, entronca num dado que nos parece fundamental: o de ser uma escrita que assumidamente se constrói a partir de um olhar solidário e inquieto, partindo do eu in­di­vi­dual para o eu co­lec­tivo. Há, na escrita de Eugénia Cunhal, um atentíssimo olhar sobre o mundo que nos rodeia; sobre as pessoas, as casas, os lugares, os objectos. E tudo isto, que poderíamos acantonar, por comodidade teórica, no mais conseguido do nosso neo-realismo, aquele que conjuga, segundo a teorização de Mando Martins, a Arte literária com o compromisso social, mas que a autora, inventivamente, arrisca por caminhos diversos, sobretudo no conto que dá título a este belíssimo livro.
Lenine tinha, sabemo-lo através dos seus textos Sobre Li­te­ra­tura e Arte, uma ideia elevada da função da literatura nas sociedades progressistas. Para tanto, além do valor es­té­tico das obras, necessário era que a literatura se assumisse como «protesto contra a injustiça social» e nela transparecesse «uma imagem exacta das relações sociais». (1) Ora, logo nos primeiros dois contos do livro Relva Verde Para Cláudio, a autora encena as determinantes que constituem o corpo orgânico desta escrita: a denúncia das injustiças sociais e a análise arguta e dialéctica das relações entre os humilhados e aqueles que detêm o poder e a fortuna, sem, no entanto, reduzir o seu fulcro central a um discurso moralista ou de panfletária assunção. Antes se constrói, conto a conto, através do labor sereno de contar, com a mesma sageza lexical que lhe descobrimos nos poemas de As Mãos e Os Gestos, com pleno domínio dos tempos e dos modos, com contenção metafórica e parcimónia no poético que percorre o sensível interior desta fala.
A clarividente preocupação pelo social está patente nesse olhar em Plongé, trespassado de ternura, em redor dos rostos que pontuam este livro: no rosto do menino que desenha casas, tectos com chaminés e tudo; na senhora que chupa rebuçados até não sobrar nada de doce nos papéis de embrulho, alheia ao desejo espelhado nos olhos do menino sujo; na menina que salta para o outro lado sem saber que afinal existe um fosso invisível, feito de preconceitos e convencimentos, a impedir-lhe brincadeiras com o menino de olhos verdes. O olhar dúctil e atento do poeta a viajar sensitivo pelo microcosmo dos universos que habitamos, mesmo que esse universo esteja circunscrito ao espaço de um cacilheiro em viagem breve entre as duas margens do Tejo.
A escrita de Maria Eugénia Cunhal penetra os espaços das nossas mais fundas inquietações: descobre rostos, sentimentos, situações, subterrâneos dramas e transmite-nos esse mundo com a simplicidade e a argúcia de quem fixa a vida no momento exacto e nos dá a ver o oculto, o obscuro coração das sombras, para que, colectivamente, nos sintamos responsáveis; para que não possamos ignorar as injustiças que esse olhar denuncia.
Em La­deira, a autora conta-nos a vida de uma operária que regressa a casa ao fim do seu ciclo de préstimo, quando a mais-valia do seu labor deixou de compensar. Foi substituída na função por outra operária mais nova e ágil, mais ren­tável, como este novo fascismo dos economicismos redutores e da usura gosta de dizer. É o ciclo rapace e desumano do capitalismo a inscrever-se nos sulcos fundos da pele gasta de uma mulher que um dia, como todos nós, teve sonhos, risos e sol a entrar pela janela estreita da casa onde, derrotada e vazia de vida e do sentido dela, regressa para nada, ou para gastar, sem saber como, o tempo que agora lhe vai sobrar.

Olhar atento às pe­quenas coisas

A escrita de Maria Eugénia Cunhal sinaliza os referentes discursivos do espaço íntimo das mulheres (suas angústias, dúvidas, afectos, desesperos) a partir dos fragmentos de estórias breves que a autora maneja com raro rigor formal. Neste particular, a escrita de Eugénia Cunhal aproxima-se do contar harmónico e modelar, feito de angústia mordida sobre o desespero dos dias, esse sussurro de dor calada que encontramos em Maria Judite de Carvalho, de Pa­la­vras Pou­padas, sobretudo quando as emoções parecem querer transbordar e se mantêm em planura de lágrima suspensa. É essa capacidade de contar o dramático interior, o que por fora permanece oculto, de inscrever a emotividade até aos limites do possível, que constituem as mais sólidas coordenadas desta fala.
A escrita de Eugénia Cunhal faz-se igualmente de outros alicerces de sustentação: das pequenas felicidades quotidianas, do optimismo de quem acredita num mundo outro, melhor e diferente e sabe que a vida se justifica nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, nos corpos que se colam numa dança que os irmana e identifica – a felicidade de não sermos excluídos, dos outros descobrirem que afinal estamos ali à espera e existimos mesmo que seja pelo tempo fugaz de uma dança.
In­ter­valo, fala-nos do tempo suspenso, das pequenas vidas que se não cumprem, se diluem, dos rituais de retrós velho, puído, de casacos virados do avesso, das aparências de uma pequena-burguesia que se alimenta de sinais exteriores mesmo que por dentro as ruínas ardam. O jogo de espelhos de uma burguesia enredada até ao absurdo nos seus próprios limites, na sua autofágica impotência, a revirar casacos, a remendar, a viver do avesso, incapaz de sublimação ou revolta. Há neste conto um tom melancólico, de uma tristeza visceral e incómoda; é um certo Portugal mesquinho, cobarde e vergado às determinantes do Fado e do Destino, que neste texto soberbo, amargamente, se reflecte.
Em A Ca­baça, a autora retorna ao espaço das pequenas dádivas do acaso, da comunhão, mesmo breve, com os outros, desse simulacro de ternura que é possível passarmos para os outros mesmo que por breves instantes. Descobrimos neste conto, mais uma vez, o mesmo atento olhar às pequenas coisas, a mesma sensibilidade no desdobrar dos afectos.

Ca­mi­nhos da ter­nura

O egoísmo e a indiferença, dois dos pilares constitutivos dos referentes ficcionais de Maria Eugénia, estão presentes, de forma impressiva, no conto A Ar­gola de Prata. A estratificação das classes, os opostos que se não tocam porque um dos lados teima em ignorar o outro mesmo em ocasiões festivas quando supostamente as diferenças se esbatem e a fraternidade seria possível. A humilhação pela indiferença, o desrespeito brutal, porque gratuito, pelo outro, a inscrever-se no desprotegido e generoso imaginário de uma criança que não compreende a crueldade do mundo que a cerca e onde irá crescer.
O Re­lógio remete-nos, de novo, para os universos íntimos da mulher, para as solidões partilhadas, para as vidas sem viço feitas de rotina e de clamores sufocados, onde os rituais se cumprem sem surpresa nem ânimo, sem emoção, com alma rendida, escutando apenas «do fundo do corredor, o relógio (…) a bater as horas, a intervalos certos, com badaladas certas, de duração certa…».
Relva Verde Para Cláudio, é o texto mais intenso, o mais comovedor de quantos constituem esta colectânea. É um pequeno prodígio da arte de narrar, de se expor, de penetrar os lanhos da memória e de connosco, ávidos leitores, partilhar o que por dentro desse território ainda arde: um livro de Remarque; o «ambiente sórdido das casas de penhores»; o dia em que, «pela primeira vez» pediu uma «bica»; «os longos meses que, desde que se conhecia, o pai passava nas prisões ou na clandestinidade»; a carta do jovem Claude, resistente fuzilado pelos nazis.
Relva Verde Para Cláudio é o percurso doloroso de uma mãe pelos caminhos da ternura e da cumplicidade com o filho; uma peregrinação pelos labirintos dos afectos, acompanhando o crescimento do filho e olhando, com olhar lúcido e sensível, o mundo onde esse filho irá crescer, emancipar-se, tornar-se homem. Até ao dia em que ele parte para além Pirinéus, com o Rui, fugindo à inevitável incorporação no exército de Salazar, negando-se ambos a combater os resistentes africanos, a participar numa guerra absurda.
A escrita de Relva Verde para Cláudio é, na sua aparente simplificação oficinal, profundamente inovadora, afastando-se – por aquilo que Maria Lúcia Lepecki considera «plano afectivo do Narrador com a narrativa», criando a ilusão de ve­ra­ci­dade mais do que de re­a­li­dade (2) – da estrutura neo-realista dos contos anteriores. Conto de uma singular beleza metafórica e sintáctica, com extrema contenção discursiva, unívoco no plano político (que neste conto é a um tempo posição ética, estética e moral) Maria Eugénia Cunhal atinge a plena maturidade de escrita, de modo de dizer, de capacidade de envolvência com o leitor, de o tornar cúmplice desse profético olhar sobre o real: expressão de inquietude e contestação. O que, salvaguardando diferenças temporais e universos de escrita, Lenine entendia dever ser a função sublimar da Literatura.

(1) - Li­te­ra­tura, Po­lí­tica, Ide­o­logia, de Claude Pré­vost - Mo­raes Edi­tores
(2) - So­breim­pres­sões - Maria Lúcia Le­pecki - Edi­to­rial Ca­minho